
Conversas do Dia do Patrimônio aborda tradição doceira
Desde 23 de maio, toda quarta-feira, no final de tarde, um grupo de pessoas se reúne para trocar informações e experiências sobre algum tema relativo ao patrimônio imaterial de Pelotas. As Conversas do Dia do Patrimônio, na Secretaria de Cultura (Secult), são preparatórias ao evento de três dias, que esse ano vai ocorrer entre 17 e 19 de agosto e terá por tema "Pelotas Imaterial: saberes, fazeres e ofícios". A 6ª Conversa reuniu sete convidados na quarta-feira (4), em torno de um assunto em comum: as tradições doceiras.
Fotos: Gustavo Mansur
A relação da portuguesa Maria Alzira Carreira com o doce começou quando ainda era criança. Tinha dez anos quando veio para o Brasil com os pais e irmãos portugueses, de navio. A mãe, que era doceira em Portugal, começou a trabalhar em uma padaria e a trocar experiências com as outras doceiras – conhecimentos que logo foram repassados aos filhos. Hoje Maria Alzira tem uma fábrica e uma confeitaria, já tradicional em Pelotas, que comercializa os doces com Selo de Indicação de Procedência, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), com qualidade comprovada através da rastreabilidade dos ingredientes.
Para Maria Alzira, é muito importante que as crianças conheçam os doces tradicionais, feitos com ovos, por isso abre a fábrica para visitação de escolas. Também se preocupa em trazer novas receitas típicas de diferentes regiões de Portugal, que consegue com parentes e amigos, para que os pelotenses tenham acesso à confeitaria tradicionalmente portuguesa – embora tenha que fazer adaptações, já que tanto a farinha quanto o açúcar são diferentes.
“A farinha brasileira é mais pesada que a portuguesa. É preciso peneirar umas cinco vezes para que tenha uma consistência parecida”, confidenciou a doceira, que distribuiu alguns exemplares dos doces tradicionais entre o público.
De origem francesa e italiana, Onélia Mendes Leite veio da colônia. Sua mãe trabalhava na “casa grande”, onde também fazia doces. Quando veio para a cidade, Onélia se especializou nos doces cristalizados: de figo, goiaba, banana, pêssego, abóbora... Com o tempo, vieram algumas facilidades no preparo, mas ela não se conforma em não poder usar colher de pau – proibida há anos pela Vigilância Sanitária (Visa).
Outros convidados da Conversa, a produtora rural e doceira Solange Cruz, que mora no Açoita Cavalo, é vizinha de Daniel Vaz Lima, residente no Santo Amor. Acadêmico que desenvolve uma pesquisa sobre Agricultura Familiar, destacando as lidas campeiras e a presença marcante da tradição doceira, Daniel contou que a maioria das casas da colônia tinha uma espécie de fabriqueta, onde produzia doces.
“Minha família só fazia doce para a nossa casa, mas nunca passamos fome porque produzíamos frutas para os colonos que fabricavam doce para vender”, relatou.
Muita coisa mudou a partir dos anos 1990, quando a Visa estabeleceu um padrão incompatível com a maneira tradicional de produzir doce: estavam proibidos os tachos de cobre e barro e as colheres de madeira, entre outras determinações. Hoje, quem faz turismo rural pode até ver as peças que deixaram de ser usadas há décadas, apenas como artefatos de museu. Uma lembrança do modo antigo de fazer doce.
A professora aposentada e pesquisadora da UFPel, Flávia Rieth, trabalhou no Inventário Nacional de Referências Culturais – Produção de Doces Tradicionais Pelotenses, que fez trabalho de campo entre 2006 e 2008, e teve acompanhamento do Iphan. Flávia falou sobre a produção de doces coloniais na campanha e doces de confeitaria, que hoje estão presentes em festas de aniversário e casamentos em todo o País.
A estudiosa lembrou que a relação entre o sal e o açúcar, que poderia se pensar ser antagônica, não o é, pois foi na época das charqueadas que a produção doceira se firmou e se expandiu no Município. Ela distribuiu o texto “Sal e Açúcar”, de autoria do historiador pelotense Mario Osório Magalhães, que morreu em 2012, e assegurava que, apesar das controvérsias, o sal (charqueadas) e o açúcar (doces) se harmonizaram e coexistiram na sociedade pelotense do século XIX.
“Era uma sociedade escravocrata, e por isso rude, e por isso cruel; mas que, para sobreviver internamente, procurava ser dócil consigo mesma. Enfim, era uma elite de emergentes, de novos áulicos, novos barões, novos bacharéis que, à maneira dos parentes lusitanos e dos senhores de engenho do Nordeste açucareiro, buscava adoçar corpo e espírito neste Brasil de clima europeu, com licores (os “finos líquidos”) e desserts; que se deliciava em quindins, babas de moça, fatias de Braga, camafeus, trouxas de amêndoas, pasteis de Santa Clara... Açúcar e sal não são, portanto, necessariamente excludentes: pelo contrário, foram complementares para o florescimento desta cidade gaúcha que desabrochou no século XIX”, diz trecho do texto de Mario Osorio Magalhães (2005).
Segundo Flávia, atualmente uma rede de trabalho - que conta com representantes da Emater, Embrapa, UFPel, Sebrae, cooperativas e doceiras - propõe ao Iphan políticas de preservação desses bens imateriais.
“O recente reconhecimento do Iphan às doceiras não é ao produto, em si, mas às detentoras desse conhecimento. Por isso, na Conversa de hoje a palavra está com elas: as detentoras desse saber”, disse ela.
Outra convidada da Conversa, Iyá Gisa D’Oxalá relatou que nos terreiros sal e açúcar equivalem a dendê e mel.
“O doce é muito forte dentro das matrizes de origem africana e nos batuques de todo o Brasil. Fazemos muitos doces dentro do terreiro. Nosso carro-chefe são as cocadas, mas também fazemos quindins, bem-casados...”, comentou.
Iyá Gisa lembrou as presenças de dona Rosinha e dona Santinha, uma das fundadoras da Cooperativa das Doceiras de Pelotas, que ministraram oficinas no terreiro e compartilharam parte de sua sabedoria culináfria.
Presente na Conversa, Ernestina Pereira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Pelotas, disse que o trabalho das africanas trazidas para a região como escravas “não se limitava a apenas mexer o tacho, elas faziam o doce também”. O doce mais tradicional de Pelotas, o quindim, teria resultado da mistura de ingredientes típicos da culinária Portuguesa (gemas) e Africana (coco).
Ocorreram Conversas sobre:
- 1ª Conversa: Tambor de Sopapo (23/5)
- 2ª Conversa: Crochê (30/5)
- 3ª Conversa: Benzeduras (6/6)
- 4ª Conversa: Lidas Campeiras (13/6)
- 5ª Conversa: Técnicas Construtivas (20/6)
- 6ª Conversa: Tradições Doceiras (4/7)
A 7ª Conversa será dia 11, com Fábio Galli, que falará sobre as tradicionais escaiolas.
Notícias Relacionadas

Conversa trata do direito de pessoas LGBTQIA+ pertencerem à cidade

Secult envia Termos de Execução aos contemplados nos Editais da Pnab

Prefeitura se reúne com migrantes africanos para discutir acolhimento, integração e políticas públicas em Pelotas

Empresa vencedora da licitação instala poltronas da plateia do Sete de Abril